ETC
Virada Postado por Byzinha em 31/12/14

(ou quatro passagens de ano que mudaram o conceito de Nyckel sobre mudança)

Esse conto é parte da série Herdeiros de Chaotia de Raabe Gabriel e Juliana Giacobelli

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Ano 7 – Fardo
Na casa dos Shatter Hapur a noite entre os dias 31 de dezembro e 1 de janeiro eram sempre sinônimo de virada. Eles se reuniam – às vezes em Sapopemba, às vezes em Poços de Calda, às vezes em Estocolmo – e celebravam juntos uma passagem que passava longe de ter cara de rito. Era uma passagem que indicava que o que passou, passou e que de agora em diante, tudo se renovaria.

Não queria dizer que teriam uma casa nova ou um carro novo ou que a mãe de Nyckel deixaria seu lugar no exército sueco para morar no subúrbio paulista. Mas era uma renovação do mesmo jeito.

No ano em quem Nyckel completou sete anos, no entanto, aquela passagem foi diferente. Eles ouviram os fogos no Sirio-Libanês e assistiram a queima de Copacabana com a TV da sala de espera no mudo enquanto aguardavam notícias sobre a saúde de vovó Hapur, a chave pendurada no pescoço da pequena era quase maior do que sua mãozinha infantil. Presente de Natal da vovó Hapur, a mesma que era motivo para não estarem no apartamento naquele exato momento. A viagem de avião e o clima frio de Estocolmo tinham sido demais para ela e, de acordo com o médico, seu sistema imunológico estava fraco. Nyc não tinha a menor ideia do que “sistema imunológico” significava, mas se sua fraqueza era suficiente para fazer vovó ser internada num hospital, então era preciso leva-lo a sério.

Como em todas as passagens de ano que ela vivenciara até então, a pequena ruiva estava cansada. Mais que cansada, ela estava exausta. O lanche natural da cantina não era tão interessante quanto a torta de maçã que vovó costumava preparar – tão doce que deixava até a alma com diabetes, de acordo com vovô – ou o churrasco suculento que seu pai improvisava na cozinha do apartamento. As cadeiras eram desconfortáveis e envergonhavam o sofá macio da fazenda nos arredores de Poços. E as pessoas não pareciam contentes naquela sala de espera, diferente dos que eram entrevistados na televisão.

Até seu pai parecia abatido e isso era algo que Nyckel nunca presenciara – ou pelo menos algo que sua curta memória conseguia se lembrar ter presenciado.

Quando ela acordou na manhã seguinte (ainda no hospital, ainda vendo caras depressivas, ainda segurando firmemente a chave) ela perguntou quando vovó poderia sair para eles comerem torta de maçã, mas vovô se recusou a falar e papai estava quase catatônico. Quem lhe deu explicações foi sua mãe, num português precário misturado com palavras em sueco.

Vovó não iria sair. Ela estava doente de mais e pronta para descansar. Eles já imaginavam que isso iria acontecer. Mas Nyc, filha, não é preciso ficar triste. Nada do que acontece em nossas vidas é mais do que podemos suportar. Nada.

 

Ano 12 – Maestria
Ela se inscreveu para o recital de fim de ano e foi a primeira vez que conseguiu o papel da protagonista. Em suas sapatilhas de ponta, Nyckel encantou o público que foi apreciar a peça original da academia de balé até na última apresentação, que aconteceu numa área nobre da cidade de São Paulo na véspera de ano novo. 2007 batia à porta e não tinha nenhum outro lugar que ela preferia estar além do palco.

Quando a peça terminou e ela estava pronta para voltar para casa, já passavam das dez da noite e a multidão tinha dispersado para seus pontos de encontro com amigos, desesperados pela champanhe e camaradagem que a virada concedia. Naquele ano, sua mãe não pode vir e naquela altura do campeonato Nyckel já estava acostumada a passar esse ou aquele feriado de família com apenas parte dela. Desde que sua avó se fora, se tornou corriqueiro, embora a chave em seu pescoço pesasse mais nessa época.

Ela e o pai tinham quase alcançado o carro quando alguém os parou. Um coreógrafo de Gramado, ele disse. Um homem tão chique e de postura tão impecável que Nyckel ficou mesmerizada com sua aparência.

– Essa mocinha tem talento de verdade. – o homem disse, olhando para ela com admiração e ternura. – Você quer ser bailarina profissional?

Com um sorriso sincero, ela apenas concordou avidamente com a cabeça. Todos sabiam que ela era uma tagarela, mas aquele homem era importante e falar a coisa errada seria seu tiro no pé. Era melhor não correr riscos.

– É claro que quer. – ele então entregou um cartão para o pai de Nyckel. – Ano que vem minha academia vai ser aberta aqui em São Paulo. Entre em contato se quiser fazer de sua filha uma estrela.

Lukk Hapur ligou. E aquele coreografo chegou oh, tão perto de transformar Nyckel em estrela só com aquelas palavras.

 

Ano 16 – Blackout
Algumas afirmações se provam sem valor algum durante a vida. De que adianta terem dito que ela tinha talento, que iria longe, que poderia fazer o que quisesse? Ora, o que ela queria fazer lhe deu um não grande e gordo por três anos seguidos e esse foi o fim de um sonho. Todo esforço e dedicação se provando um beco sem saída.

Aos dezesseis anos, Nyckel tinha jogado suas sapatilhas de balé pela janela do carro – literalmente.

A decisão de abandonar os palcos foi tomada num momento de raiva e mantida quando a calma chegou. Ela não iria alimentar uma paixão que não lhe dava nada em troca (como aquela que sentiu pelo menino do 3º ano quando tinha acabado de entrar no ensino médio). Algumas coisas simplesmente não são para acontecer, como a esperança boba de renovação e mudanças que a queima de fogos prometia.

Algumas coisas – ela pensava para si, segurando com firmeza a chave de sua avó na palma da mão – não mereciam ser sentidas. E ela não iria sentir. Não mais.

 

Ano 18 – Visão
Havia sentimentos de mais na vida de Nyckel em seu 18º ano novo. A vida, agridoce como ela era, lhe ofereceu as mais diversas curvas nos últimos doze meses. Seus pais estavam juntos e parecia que era oficial, Kirsten Hapur deixaria de ser Tenente-Coronel na Suécia.

Seu mundo, sua São Paulo, era apenas um pedacinho de um universo paralelo que fazia parte de uma lista com outros 25 universos. A chave que ela carregou no pescoço desde pequena se provou ser um objeto poderoso e cobiçado.

No 18º ano novo de Nyckel, a garota ruiva carregava uma pedrinha verde no pescoço e perguntas na ponta da língua. Sua família estendida (que contava com os amigos dos pais, Guilherme e Bianca, e logo somaria com o bebê que os Hong tinham à caminho) se reuniu no apartamento suburbano dos Hapur para comer o churrasco improvisado de Lukk e saborear a torta de maçã cuja receita Nyc encontrou na fazenda da família alguns anos antes, tão doce que dava diabetes até na alma.

Diferente de alguns meses (até mesmo poucos dias) antes, ela podia verbalizar suas perguntas e questionamentos e conseguir respostas. O fato era tão novo, que Nyc sempre acabava se surpreendendo quando alguém lhe dava alguma lição grátis sobre o que ela podia fazer ou lhe contava história de Magos que passaram por suas vidas.

A única pessoa ali que sabia exatamente a extensão de seus poderes era seu pai. Era dele, afinal, que tinha herdado a capacidade de Viajar entre universos, o único motivo que a fez se aventurar em Chaotia e conhecer outros herdeiros, possuidores de chaves poderosas como a dela. E Lukk estava tentando com muita cautela demonstrar o que ela poderia fazer dentro do universo limitante em que viviam.

Naquele 18º ano novo de Nyckel, seu pai abriu uma janela para outro universo – literalmente – e ela pode visualizar uma cidade de Zeta muitíssimo parecida com São Paulo, também comemorando a virada que prometia mudança e renovação.

E por ser Zeta, o universo do outro herdeiro, Torth, Nyckel pensou nele durante aqueles últimos minutos de 2012. E também pensou em Ethel e Keach, Zheng e Bravo, Addra e Chel e Ilore e se perguntou se alguém se arrependeria das decisões que tomou, porque eles haviam começado a trilhar um caminho sem volta, sua única direção era seguir em frente. Pensou em como Beta era muito mais assustador do que Delta (oh, minha linda São Paulo) e como Zeta transmitia uma sensação de segurança mesmo através da janela; fez sentido como cada herdeiro de Chaotia é – ela concluiu, seus dedos se fechando ao redor da pedra verde em seu pescoço.

O portal de possibilidades para o novo ano se abriu à frente de Nyckel (um portal metafórico, diferente do que a levou para Beta meses atrás) e ela o atravessou, sentindo a película de possibilidades chover sobre si. Afinal, nada do que acontece em nossas vidas é mais do que podemos suportar. Nada.


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2 Comentários

1. Aguy
02/01/2015 às 15:48
Você já comentou 7 vezes.

Ah, você já sabe… Adorei! E cara, esse é o teu ritmo. Ficou lindo! Deu vontade de reler HdC. /smile /smile

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Byzinha Reply:

Obg. Aguy <3_<3

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