Por mais que a sinopse de Ritos de Adeus tenha me interessado muito, confesso que, a princípio, não estava muito animada para lê-lo. Creio que os diversos e difíceis nomes em islandês e também os longos registros e documentos a cada começo de capítulo tenham sido os responsáveis por isso, mas graças a Deus que eu segui com a leitura. Segui, segui e segui por solidão vinda dos ventos mais furiosos e do choro incontrolável banhando tantas páginas que nem consigo contar.
“Eu permaneço em silêncio. Estou determinada a me fechar para o mundo, apertar o coração e me aferrar ao que ainda não me foi tomado. Não posso me permitir sumir. Vou manter o que sou por dentro e manter minhas mãos apertadas em todas as coisas que vi, ouvi e senti. Os poemas compostos enquanto eu lavava, ceifava e cozinhava até minhas mãos estarem em carne viva. As sagas que conheço de cor. Afundo tudo o que me resta e vou para debaixo d’água. Se eu falar, minhas palavras sairão como bolhas de ar. Eles não conseguirão ficar com minhas palavras. Eles verão a prostituta, a louca, a assassina, a fêmea pingando sangue na grama e rindo com a boca cheia de terra. Eles dirão “Agnes” e verão a aranha, a bruxa apanhada na teia de sua própria trama fatal. Poderão ver o carneiro cercado por corvos, balindo por uma mãe perdida. Mas não me verão. Eu não estarei lá.”
O livro de estreia da australiana Hannah Kent é, para não rodear por palavras inúteis numa hora como essa, magnífico. O que mais me deixa espantada é que tal palavra se encaixa em mais ângulos do livro do que deveria. Sabe, quando você lê uma obra, é claro que acha defeitos aqui e ali, mas acaba os ignorando. Com Ritos de Adeus foi o mesmo, mas acontece que, mesmo que eu não ignorasse os defeitinhos, nada mudaria. Cada palavra, página ou sentimento escorrendo pela folha como sangue correndo pelos sulcos da madeira, pelas veias de nossos corpos… cada pedacinho da história contada continuaria magnífico.
Magnífico e tão doloroso quanto possível.
O enredo segue Agnes Magnúsdóttir, a última pessoa condenada à morte na Islândia, no ano de 1828. Também foi uma bastarda, uma criança abandonada, uma indigente e uma criada, uma mulher que se agarrou à vida com os próprios dentes e lutou como pode para viver melhor e não sentir a fome batendo na carcaça de seu corpo magro ou, quem sabe, completar-se com uma família, com pessoas que poderiam sorrir ao sentir seu nome estalando em suas bocas.
Agnes não conseguiu nada disso.
Considerada culpada pelos assassinatos de dois homens, um deles sendo seu patrão, Agnes espera pela morte em uma pequena fazenda onde ela um dia viveu em sua infância, vendo no trabalho uma forma de vagar, quem sabe um tanto menos dolorosamente, pela solidão de não ser vista e sentida como realmente é. Durante aproximadamente um ano, a prisioneira acaba conquistando a simpatia de alguns membros da família que está a hospedando até a execução, mas apenas isso não a consola; apenas isso não é o suficiente.
Agnes Magnúsdóttir quer viver assim como ela sempre fez: contra todas as probabilidades, mas o golpe do machado, desta vez, parece ser fatal.
Sendo uma história baseada em fatos verídicos, tal veio até a autora durante seu intercâmbio na Islândia e esta simplesmente se apaixonou pela personagem de Agnes. Ouso dizer que também fiz o mesmo, afinal Ritos de Adeus acaba sendo um complexo espectro de emoções, palavras e sussurros ardentes correndo pela espinha. Através das páginas do romance, solidão, medo, angústia e culpa acabam por nos capturar tanto pela pele quanto pelo coração, como um gancho enferrujado na carne.
Eu sou muito apegada àquilo que sinto enquanto leio certas obras, então às vezes acabo esquecendo alguns fatores técnicos aqui e ali, mas ser feita de alma dá nisso mesmo…
E para não me demorar, não só recomendo esse lindíssimo livro pelas emoções pungentes e emantadas de dor, mas também até pelo seu valor histórico: Ritos de Adeus explora, e muito, o papel das mulheres na época, como nós éramos e ainda somos vistas entre os homens. Por vezes fica muito, muito claro como nossos sentimentos são constantemente colocados sob um tapete de falácias e nossas dores tidas como menores do que as daqueles que abusaram e feriram nossa carne e nossa alma. A magnífica obra de Hannah Kent acaba sendo mais que uma rica exploração da solidão e da morte. É um ato de justiça tanto ao que consta Agnes Magnúsdóttir quanto às mulheres que, afinal, se são astutas e inteligentes, ambiciosas e descontentes com o lugar imundo ao qual os homens lhes reservaram, lutaram com suas próprias garras até contra os murmúrios secretos as chamando de bruxas, vadias e subversivas.
Um ato de justiça àquelas que viram corvos se alimentando de seu corpo por simplesmente serem mulheres num mundo abusado por homens.
Informações
Título: Ritos de Adeus (Burial Rites)
Autor: Hannah Kent
Tradução: Alexandre Martins
Número de Páginas: 320
Edição: 1ª – 2013
Editora: Globo Livros
Preço: R$39,90
Classificação:
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