Um fundo preto. A voz rouca, ousada e melancólica de uma mulher preenche o vazio. Jules et Jim, Jules and Jim, Jules e Jim. E Chatherine. Oh, doce Catherine.
Você me disse: “Amo você.”
Eu te disse: “Espere.”
Eu ia dizer: “Possua-me.”
Você disse: “Vá embora.”
Havemos de acreditar, vez ou outra, que alguns filmes ultrapassam as barreiras do tempo a que são cometidos. Por maior que seja sua estranheza, tanto em seu tempo quanto nos que vierem a seguir, basta um olhar despretensioso e sem julgamentos para percebermos que estamos diante de uma peça impar na indústria cinematográfica.
Jules e Jim – Uma Mulher Para Dois, é o terceiro filme da carreira de François Truffaut e, talvez, seja sua adaptação mais famosa. Parte do movimento Nouvelle Vogue, que surgiu entre a década de 1950 e 1960 onde um grupo de jovens cineastas e críticos criaram uma nova fórmula para se fazer cinema, experimentando ideias desconexas com acontecimentos simples do dia-a-dia na vida dos parisienses. Apesar do retrato simples e muitas vezes ingênuo de histórias com teor dramático, os filmes produzidos nesta época nada deixam a desejar para dramalhões americanos.
Produzido no começo dos anos 60, o longa se passa no período pré-Segunda Guerra Mundial. A trama, baseada no livro homônimo ao qual François Truffaut se encantou, narra esta amizade volátil de Jules e Jim durante duas décadas. Jules, um austríaco conquistador, conhece Jim, um francês solícito e boa-praça. Juntos, dividem o amor à escrita e compartilham a paixão por poesia e arte e o desprendimento ao dinheiro. Mesmo lutando em lados opostos durante a Guerra, nunca deixaram de se escrever e mantiveram contato mesmo com tempos difíceis. Apesar de este filme possuir o nome desses dois amigos, nada aconteceria sem a presença de Catherine, a jovem que arrebata o coração dos dois amigos. A presença de Catherine é tão marcante que sua voz angustiada, rouca e ansiosa nos arrebata logo nos primeiros segundos do filme.
A intenção de Truffaut era descompromissadamente representar o poder que a mulher poderia exercer na sociedade de forma sutil. Ao olharmos para Catherine, não enxergamos a mais bela ou mais prendada das damas francesas da época, como muito bem aponta Jules no filme, mas seu temperamento ágil é sedutor e seu poder de persuasão clama por atenção – a qual entregamos sem hesitar. Ela poderia ser considerada sensual mesmo com roupas e atitudes masculinas, a este último detalhe, nos remetemos a uma das cenas mais marcantes do cinema.

Direcionamos nossa atenção à Catherine justamente por seu temperamento bipolar, inconstante e por querermos acompanhar o que faria no instante seguinte. Mulher além de seu tempo desejava a vida, mais do que qualquer outra coisa. Não queria ser esquecida, nem por um momento. Mesmo que necessário se jogar em um rio para que voltassem a prestar atenção a ela. Suas atitudes, um tanto infantis em certos momentos, demonstram a urgência e a ansiedade por viver cada momento como o último. Seu relacionamento com Jules, a princípio, é ótimo para ilustrar seus sentimentos. Ele acreditava que, para um casamento funcionar, a esposa deveria ser fiel a seu marido. Catherine e sua experiência com homens, o assegura de que eles anulariam um ao outro por seus pensamentos diferentes. Logo a relação se desgasta e ela procura a sobrevivência em outras relações, enquanto Jules mantém-se complacente para não perdê-la. Catherine então lança suas afeições na direção de Jim, o longo estimado amigo que seguramente possui uma atração por ela desde que a conhecera mas que nunca havia demonstrado tal sentimento abertamente em respeito à Jules. Mas, como suas relações, o efeito platônico há de determinar a duração deste relacionamento.
Ao longo desses vinte anos, Catherine intercala-se entre os dois amigos. Suas afeições, ora de Jules, ora de Jim, ora de outros, nos cativa e nos distancia de sua personagem. Esta é mais uma das características marcantes dos filmes de Truffaut, a veracidade com que seus personagens se mantém alarma nosso mais profundo pensamento de repulsa. Eles transpassam um espelho, nítido, dos seres humanos tais como são: presos no meio, entre serem completos e incompletos, felizes e infelizes. Entre serem do gosto popular ou não. Entre pular de pontes ou manter-se calados.
A pretensão do diretor era fazer Jules e Jim soar diferente de seu primeiro filme. Os Incompreendidos, retrato autobiográfico de François Truffaut, mostra Paris de uma forma mais crua e industrial, enquanto este filme esbanja as paisagens do campo e de liberdade. Podemos relacionar esta escolha de cenário à sensação de que somos nós, bisbilhotando a vida de Jules, Jim e Catherine. Percebemos que não há, no filme, um julgamento sobre o estilo monogâmico de vida que assas personagens levam. Há somente nossos pensamentos sobre.
Não bastasse a temática tão moderna para seu tempo, seus recursos também foram considerados inovadores. A utilização de pós-gravações de áudio nas cenas, que faziam-nas saírem desconexas e esquisitas, é a marca de filmes como este. Parecem defeitos, porém são características particulares que incrementam a proposta desta película. Devemos observar também que o recurso de narração torna o desenvolvimento do filme um todo mais literário que o esperado. A montagem inovadora concentra cenas muito rápidas e abrange um período muito longo na vida das personagens. A técnica da narração, como no livro, é um elemento extra para cenas as quais os cenários se fariam mais importantes.
Há muito a ser pensado sobre a escolha deste romance por Truffaut para ser roteirizado, mas talvez seja a prontidão qual Jeanne Moreau se dispôs para com sua personagem que a transformaram em musa, a musa de Truffaut. Não é à toa que notamos, durante o longa, que este filme parece ser sobre ela, sobre Catherine. E de fato é, sobre o furacão, a força da natureza, que era. Aliado ao comprometimento de Moreau, estava a dedicação e entrega de Orkar Werner, como Jules e Henri Serre como Jim. Suas atuações são pontuais, precisas e conexas com o todo. Encaixando-se perfeitamente, encontrava-se a trilha sonora, presente em momentos adequados e quase alcançando a marca imperceptível de guiar as emoções de quem assiste.
Os cenários esplêndidos, demonstram a fotografia cuidada, na medida que coube no orçamento apertado. François Truffaut, neste filme, apresentou não só elementos novos ao cinema francês, mas deu um novo ar para atuações aflorarem, ao invés de aprisionar seus atores.
Jules e Jim é um filme além de seu tempo. Isto também não quer dizer que seja adequado para o nós, que quase cinquenta anos depois ainda não lidamos com sua temática muito bem. É um filme despretensioso, que propõe mostrar-nos os altos e baixos da vida, a qual somos nós que guiamos.
ficha técnica
Título original: Jules et Jim.
Direção: François Truffaut
Elenco: Jeanne Moreau, Oskar Werner, Henri Serre.
Roteiro: François Truffaut (adaptação), Henri-Pierre Roché (romance)
Trilha sonora: Georges Delerue
Duração: 105 min.
País: França.
Gênero: Drama, Romance.
Trailer: (assista)
Classificação:
1 Comment
Flavio Queiroz
13/02/2018 at 4:20 pmOlá Thayná, belíssima analise do filme e que eu não sabia ser adaptado de um livro, voltarei mais vezes, você faz um excelente trabalho.